Representatividade Importa



Hoje eu gostaria de falar um pouco sobre a vitória da Thelma no BBB 20. Eu confesso que não acompanhei o programa, nem sou uma grande fã, mas pude acompanhar alguns dos grandes destaques pelas redes sociais. Sei que este ano o reality abordou muitas questões importantes e por ser um programa de entretenimento, proporcionou ao público de uma maneira divertida a reflexão de vários assuntos, entre eles o feminismo, o machismo e o racismo.
Eu gostaria de dar uma atenção especial ao racismo agora. É um assunto delicado, difícil de se abordar, e assim como a política muitas pessoas evitam falar sobre isso. Mas tentarei expor um pouquinho de forma leve, tentarei. Vamos fazer também uma breve viagem histórica.
A vitória da Thelma significa muito para o povo brasileiro, em especial para as mulheres negras desse país. Representatividade importa muito. Essa vitória foi de todas nós. Uma coisa que ainda me choca bastante, e como a própria Thelma mencionou, o Brasil é um país onde 7,6% da população é negra, isso representa quase 15 milhões de indivíduos. Eu me pergunto onde estão essas pessoas que não são nas universidades? Na turma de medicina onde se conta nos dedos quantos alunos são negros, na de psicologia, engenharia, odontologia, etc? Não. Estão com todo respeito, nas ruas, nos subempregos, na miséria, nas prisões. Eu sei que existe uma pequena parcela que consegue ter sucesso e se dar bem na vida, mas ainda é mínima. E Sabem por quê? São raízes históricas profundas, feias, cruéis. O povo negro foi trazido para o Brasil para ser inferiorizado e escravizado, nem preciso entrar muito nos detalhes do que foi a escravidão, dá pra imaginar e a maioria já sabe. O fato é, que ao receber um pedaço de papel escrito: “Você está livre”, não lhes trouxe nenhum tipo de indenização pelo mal sofrido nem dignidade, nem respeito, nenhuma reparação. Durante muitos e muitos anos, mesmo livres, os negros não eram aceitos pela sociedade, eram discriminados pela cor da pele e ainda hoje infelizmente ainda são, sofriam todo tipo de ofensa e eram banidos em todos os lugares que tentavam entrar. Além disso, crescemos ouvindo e vendo tudo o que diz respeito a cultura negra ou africana ser endemonizada, satanizada, desrespeitada. Parece que tudo que vem do negro é ruim já reparou? Tudo o que se referia ao negro era tido como mal, magia branca é boa e magia negra é ruim. Mercado negro é ruim. Preto ladrão... e por aí vai. Muitos dizem, “Ah mas os espanhóis também foram escravizados, os italianos, os japoneses...”. Sim também foram, mas com uma diferença, a maioria deles recebeu certo tipo de indenização ou “reparo” por isso e sua cor da pele nunca significou uma marca ruim a ser carregada por onde fosse, nunca foi um peso. Um italiano, japonês, alemão, nunca foi banido de entrar num trem, de se sentar numa mesa, não são confundidos com ladrões por estarem mal vestidos, não recebem olhares tortos em lugares chiques. Enfim o que eu quero lhes mostrar, é que ser negro principalmente no Brasil muitas vezes é um fardo. Traz marcas, traz dores. Há um tempo atrás, li um texto muito marcante de algumas mulheres negras contando sobre preocupações que algumas de nós temos que ter e que pessoas brancas jamais imaginariam; como por exemplo: evitar abrir ou mexer em suas bolsas dentro de uma loja ou mercado, estar sempre bem vestida até para ir a padaria, não se dar ao “luxo” de entrar de chinelo no shopping, entre outras coisas. Tudo isso é muito real, e precisa ser dito, precisa ser conversado, precisamos que as pessoas se coloquem umas no lugar das outras e sintam o que muitos de nós sentimos. Li outro texto também que falava da solidão da mulher negra, que muitas das vezes ainda é vulgarizada, menosprezada, e muitos homens brancos não querem se envolver com elas por não quererem “escurecer” suas famílias, ou terem que lidar com as lutas que virão ao se relacionar com uma mulher negra. Se ela sabe se posicionar e pensar, ai é “preta chata, louca, barraqueira”, pode ser vista como amante, mas não serve pra ser esposa. Serve pro carnaval, e pra ser empregada doméstica, de vez em quando pra uns “amassos” escondido dos amigos. É chocante e triste. Eu chorei lendo esse texto.
Eu particularmente sempre odiei carnaval e um dos motivos era a exposição pejorativa que era feita da mulher negra na TV, como se essa fosse nossa única qualidade. Eu morria de vergonha quando era adolescente e via a globeleza na TV, odiava. Queria morrer! Aos poucos isso vem mudando, ainda bem. Agora vou contar um pouco de mim, da minha história. De certa forma, eu tive muita sorte, sorte dos meus pais também terem tido sorte, e terem batalhado muito pelo espaço deles na sociedade. Minha mãe fez faculdade de contabilidade e meu pai não fez faculdade, mas serviu a marinha por muitos anos, depois se aposentou como guarda-portuário. A prioridade deles sempre foi que eu e meus dois irmãos tivéssemos estudo. Nós tivemos uma infância muito boa, tivemos o privilégio de ter roupas legais, brinquedos, estudamos em boas escolas, e eu sempre estudiosa tinha bolsas parciais. Tivemos alguns perrengues e dificuldades, mas nunca comparado ao que muitas outras famílias negras passam. Nossa casa sempre foi nossa e nunca nos faltou alimento ou até oportunidades de lazer. O fato é, que nunca tivemos dinheiro sobrando, sempre tivemos o necessário e algumas vezes dava pra algumas coisas extras e legais. Então quando fui pra faculdade de psicologia recorri ao FIES. O programa do governo que muitos criticam, foi o que me proporcionou hoje ser a profissional que sou e poder contribuir com meu país, com a minha sociedade e comunidade de algum a forma. Hoje sigo pagando. Entendam que estes programas tem fundamental importância pra permitir o acesso das pessoas a educação de qualidade. Não vou entrar no mérito do programa, nem se ele deveria ser melhor, isso ou aquilo. Eu quero mostrar a vocês um outro lado, um lado que talvez muitos de vocês talvez nunca tenham enxergado, mas que agora podem refletir sobre isso. Eu encaro muitas dessas iniciativas como formas “paliativas” de se reparar danos históricos graves, um certo débito com o povo negro. Assim como o bolsa família, as cotas etc. Eu sei, não existem apenas negros pobres, mas sabemos que a maior parte da população pobre e carcerária é negra. Taí outro ponto que também gostaria de dar uma atenção especial. Não estou aqui para defender bandidos, nem nada, mas observem que o povo negro sempre foi muito marginalizado, e se não era aceito em lugar nenhum só lhe restavam os becos, os morros, as favelas, e consequentemente o crime (mais uma vez não estou querendo justificar nada, mas explica, não explica?). Se um povo é submetido à miséria e má educação, e as maneiras são corrompidas na infância, o que mais podemos concluir se não que criamos ladrões para depois puni-los? Thomas Morus citou isso em seu livro Utopia. De certa forma, foi o que aconteceu com boa parte da população negra. Entram fatores de caráter, personalidade etc? Entram, claro que entram. Como psicóloga não posso negar isso, mas também sabemos que muitos já são corrompidos logo na primeira infância. Se pessoas não são respeitadas, por que elas iriam respeitar alguém? Se não são vistas, se não possuem voz, são tidas como invisíveis e depois como o câncer de uma sociedade, olha a incoerência!
Quando digo que tive sorte, tive também porque no Brasil, o racismo também é socioeconômico. Ou seja, se você é pobre e negro, vai ser mais difícil o acesso à maioria das coisas e principalmente ao respeito. Se você é classe média, vai facilitar um pouco (o que foi meu caso – e também pelo fato deu ser considerada por muitos “morena linda” – Já falo sobre isso). Agora se você for negro e rico – o que são poucos, temos de exemplo os atores, alguns atletas etc, ai você é mais “aceito” perante a sociedade. Eu sonho com um mundo onde a cor da pele não importe, e sim o brilho nos olhos. Mas pra esse dia chegar, não podemos deixar de ter essa conversa que estamos tendo aqui agora, não podemos esconder o problema pra debaixo do tapete, não podemos simplesmente fingir que nada disso aconteceu e acontece até os dias de hoje. É preciso tocar na ferida pra poder limpá-la devidamente e depois curá-la. Não dá mais pra aceitar pessoas que tentam deslegitimar o nosso discurso dizendo que é “mimimi” como muitos dizem, ou então: “Ah, mas é passado, já foi, esquece!” Esquecer? Como posso esquecer se todos os dias, toda hora isso está explicito na minha cara? Como posso esquecer se a todo momento somos lembrados do por que ainda não ocupamos cargos elevados? Do por que os cursos como medicina, psicologia..., têm pouquíssimos ou nenhum negro?  Do por que ainda ouvimos pessoas usando nossa cor pra fazer piada infame ou pra ofender, como se fosse uma ofensa, ou então pessoas tão constrangidas de nos chamar de negros, porque nem ao menos sabem como se referir? Não é ofensa gente. Menosprezar, tentar diminuir alguém usando a cor da pele isso sim é ofensa;  mas falar negro ou negra não.
Quando eu era criança tive que brigar na classe para que todos me aceitassem dizer que minha cor era negra em um exercício que nem me lembro. Eles queriam ditar qual era minha cor, pra eles eu era morena. Como se falar negra fosse uma ofensa. Por ser uma negra de tom mais claro, tive mais privilégios e oportunidades. Mas ainda sim, as vezes sinto alguns impactos.
Vejam, eu comecei esse texto falando do tanto que significou a vitória da Thelma né?! Eu cresci tendo como referência, apenas a Xuxa, a Eliana e Angélica. Eu amo elas até hoje, mas confesso que sentia falta de ver alguém da minha cor sendo exaltada na TV e que não fosse no carnaval! Eu tive muitos problemas de auto estima por isso, me sentia uma menina feia, estranha, alta demais, magra demais, com cabelo encaracolado/crespo demais e negra. Sem referências, você se sente feia. Porque pelo padrão exaltado, você não se encaixa. Então automaticamente, você está fora. Os meninos não vão olhar pra você, não vão vir atrás de você, mas sim da sua colega ou amiga loira. Era esse o sentimento da infância e da adolescência. Se você é negra com certeza se identificou, se não é, pergunte a sua amiga negra. Quando cresci, depois de um longo processo de aceitação, até que hoje consigo me considerar bonitinha vai rs. Brincadeira, sou linda! Já me vejo assim, sinto até que muitos homens também, alguns me respeitam e admiram, outros nem vou comentar. Isso acontece só pelo fato de sermos mulheres, muitas vezes somos assediadas por tudo, nem tanto pela cor, embora a cor também as vezes represente um grande fator. Hoje muitas crianças, poderão se beneficiar de referências negras inspiradoras, que além de lindas, são inteligentes, ocupam espaços e cargos importantes e nos defendem. Eu não tive isso na minha infância. Hoje eu também posso ser referência pra alguém. Nem mesmo minha mãe gostava do meu cabelo, né mãe? Ela não sabia cuidar dele, dava trabalho, na época só o cabelo liso era tido como bonito, então era mais fácil alisar. Eu não a culpo. Mas hoje eu pude perceber o que até o nosso cabelo representa e por isso resolvi começar a transição e passar por esse processo de aceitação das minhas raízes. Não que eu não possa usá-lo liso, ou de outras cores, nós podemos tudo o que quisermos! Mas o fato é que eu nem sequer conheço o meu próprio cabelo, porque desde que me entendo por gente sempre o alisei, vivi submetida a químicas capilares e evitando até um banho de mar. Olha que horror! Privei-me de tudo, até da chuva por causa de um cabelo imposto. Hoje quem gostar de mim tem que gostar da cabeça aos pés, inclusive eu mesma.
Pra terminar, a vitória da Thelma representou muita coisa, por que sabemos o quanto é difícil uma mulher negra ser milionária nesse país. Representou muita coisa porquê permitiu que muitas pessoas conhecessem a história dela e de milhares de outras Thelmas, e permitu o que eu mais amo ver, pessoas de todas as cores entendendo e respeitando a história negra, respeitando seu discurso sem tentar diminui-lo ou desvalorizá-lo e se permitindo sentir o que o povo negro sentiu e ainda sente até hoje. As dificuldades impostas pela nossa sociedade racista ainda são muitas, mas com certeza com muito mais pessoas engajadas e conscientes essa luta não é mais só nossa, não estamos mais sozinhos, nossos amigos de todas as cores podem nos defender também. Juntos somos mais fortes! Ninguém é melhor ou pior do que ninguém nem pela cor da pele nem pela posição em que ocupa. Igualdade, respeito e amor é o que desejo pra nós!

Thays Sousa da Silva,
Psicóloga Clínica 
CRP 06/136006
(13) 99129-3136



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